terça-feira, 15 de maio de 2012

Uma breve Relação entre Filosofia e Psicologia



Existe uma forte relação entre a Filosofia e a Psicologia, podendo-se afirmar que são as ciências humanas mais próximas[1]. Os primeiros estudos sobre o psiquismo e a alma foram realizados pela Filosofia Grega, a qual observava atentamente as atividades humanas e a manifestação da alma[2]. Sendo assim, pretende-se aqui fazer uma breve análise da relação de proximidade entre a Filosofia e Psicologia, salientando: a grande afinidade que existe entre o pensamento filosófico e a Psicologia; o aprofundamento da antropologia filosófica, principalmente do psiquismo, dimensão constitutiva do ser humano; e, por fim, o autoconhecimento, que propiciará um encontro da verdade e bem que habita no interior humano.
A própria etimologia da palavra Psicologia pode ressaltar o desejo que tanto a Filosofia quanto a Psicologia tem, a saber: conhecer “O que é homem” [3]. O termo ψυχή (psyché) significa pessoa, alma humana, sentimento, caráter[4] e λόγος (lógos) significa matéria de estudo e conversação, relato, notícia[5]. Sendo assim, a Psicologia busca estudar a pessoa humana, principalmente sua dimensão interior.  Do mesmo modo que o pensamento filosófico: “No campo filosófico, a interrogação sobre o homem torna-se o tema dominante na época da sofística antiga (séc. V a. C.) e, a partir de então, acompanha todo o desenvolvimento histórico da Filosofia Ocidental...”[6]
Sendo assim, expressa-se uma primeira relação entre o estudo da psicologia e o pensamento filosófico, pois aquela está em estreita relação com este, possibilitando-se assim um diálogo e um aprofundamento de temas caros à Filosofia que a psicologia poderia iluminar e/ou até mesmo responder e dar soluções.
Já nesta segunda relação faz mister lembrar do  pensador Immanuel Kant, filósofo moderno do século XVIII, que elaborou uma crítica à Filosofia e consagrou seu pensamento como a “filosofia da filosofia”[7] . Kant ressalta na obra Crítica da Razão Pura que todo interesse de seu pensamento está nas questões:
Que posso saber?
Que devo fazer?
Que posso esperar?[8]

Estas perguntas são, na obra Lógica, unificadas em uma só (que está ausente na Crítica da Razão Pura): “o que é o homem?”. Kant salienta que a Filosofia é, impreterivelmente, uma forma de antropologia[9]. Ao que se percebe, a partir do pensamento Kantiano, a questão sobre o ser humano se torna central em toda reflexão filosófica[10], ou seja, o ápice de todo discurso filosófico se dará na antropologia.

Assim sendo, os estudos da Filosofia moderna e pós-moderna se voltam com insistência para elaborar o melhor discurso possível sobre o ser humano[11], buscando levar em consideração suas categorias de estrutura, relação e unidade. Na categoria de estrutura ou níveis ontológicos constitutivos, o ser humano é composto de corpo próprio, psiquismo e espírito (dimensão espiritual, chamada por alguns autores também de mente)[12]. Na categoria de estrutura percebe-se a importância e influência da dimensão psíquica, porque é graças a ela que poderá acontecer a ligação entre as outras duas dimensões: “Desde o início, pois, de nossa reflexão sobre o psiquismo ele aparece como situado numa posição mediadora entre o corporal e o espiritual.” [13] Além disso, o psiquismo é responsável por interiorizar as experiências vividas pela dimensão corporal e exteriorizar o mundo interior do sujeito humano:

“A passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo, ou da presença natural para a presença intencional, dá-se aqui no sentido de uma interiorização do mundo ou da constituição de um mundo interior. Pelo ‘corpo próprio’ o homem se exterioriza ou constitui sua expressão ou figura interior, e o Eu corporal é como que absorvido nessa exteriorização. Pelo psiquismo o homem plasma sua exteriorização ou figura interior, de modo que se possa falar com propriedade do Eu psíquico ou psicológico.”[14]
Portanto, o estudo da dimensão psíquica é fundamental para uma lapidação dos estudos antropológicos filosóficos, pois o psiquismo faz acontecer o encontro da unidade entre os pólos da dimensão humana e ainda aprofundar as expressões interiores do homem. No estudo do psiquismo humano poder-se-á entrar mais profundamente no estudo da dimensão que consegue trazer unidade na constituição ontológica humana e ainda é responsável por fazer com que o ser humano saia de um solipsismo espiritual para uma abertura ao mundo real e empírico.
Por fim, apresenta-se esta terceira relação, fazendo-se mensão ao o pensamento de Agostinho de Hipona, o qual acredita que o ser humano tem pela Razão (inteligência-razão) uma abertura para a Verdade e pela Vontade uma abertura para o Bem, conforme afirma Sciacca sobre o Agostinho: “Todas as operações do espírito provenientes do espírito mesmo por meio da inteligência-razão, que alcança a Verdade, e da vontade, que adere ao Bem.”[15] Sendo assim, a dimensão interior do ser humano busca a verdade e o bem, pois todos os homens estão abertos a esse encontro.
O ser humano, deste modo, vai a uma busca constante por essa verdade e esse bem que possa dar sentido a sua existência e manter-lhe em constante descoberta e desvendamento do mundo interior e exterior. Quanto maior seu afastamento de si mesmo menor será sua possibilidade de encontrar essa Verdade e Bem que tanto busca. O ser humano deve, então, partir em busca dessa verdade no mais íntimo de si mesmo, pois poderá encontrar nessa relação consigo mesmo o seu sentido: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a verdade habita no coração do homem”[16].
Ora, sendo a psicologia o estudo do ser humano, com atenção para a interioridade humana, vez-se como terceira relação o autoconhecimento pessoal, visto que é necessário, conforme afirmado acima, o homem se conhecer para encontrar a verdade e o bem, consequentemente o sentido da existência humana. A psicologia poderá propiciar um maior contato com a dimensão interior humana e, assim, a uma aproximação do “eu” que habita no “coração humano”.
Deste modo, pode-se concluir que a Filosofia e a Psicologia tem uma estreita relação e necessitam estar constantemente sendo estudadas para um melhor aproveitamento da Antropologia. Além disso, ambos os estudos podem propiciar ao homem um maior autoconhecimento de si e melhorar as relações intersubjetivas. Ressalta-se que este estudo não pretendeu apontar todos os pontos de relação entre a Filosofia e Psicologia, mas foram apontados aspectos que se acredita serem alguns dos principais.

Referências Bibliográficas:

·         AGOSTINHO, Santo. A verdadeira Religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1987. [abreviatura: AGOSTINHO, 1987, ...]

·         DEKENS, Olivier. Compreender Kant.Trad. Paula Silva. São Paulo: Loyola, 2008. [abreviatura: DEKENS, 2008, p. ]

·         DORIN, Lannoy. Enciclopédia de Psicologia Contemporânea: Psicologia geral. São Paulo: Livraria Editora Iracema Ltda, 1980. v. 1. [abreviatura: DORIN, 1980, p. ]

·         MELENDO, Tomás. Iniciação à Filosofia: Razão, fé e verdade. Trad. Marciano Lang Fraga. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúcio” (Ramon LLuLL), 2005. [abreviatura: MELENDO, 2005, p.]

·     KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valerio Rohder e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cutural Ltda, 1999. [abreviatura: KANT, 1999, p.]

·        PEREIRA, Isídio, S.J.. Dicionário grego-português e portguês-grego. 5. ed. Porto: Livaria Apostolado da Imprensa, 1976. [abreviatura: PEREIRA, 1976, p. ]

·        SCIACCA, M. F. San Agustín. Trad.  P. Ulpiano Álvarez Díes, O. S. A. Barcelona: Luis Miracle, editor, 1995. [abreviatura: SCIACCA, 1995, p. ]

·        VAZ, H. Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2010. [abreviatura: VAZ, 2010, p. ]


[1]Cf.  VAZ, 2010, p. 171
[2] Pode-se citar alguns exemplos: Sócrates pensava, baseado no oráculo de Delfos, que para se conhecer o comportamento das outras pessoas era necessário conhecer-se a si próprio: “conhece-te a ti mesmo”; já Platão preocupa-se mais com o problema das origens das ideias; Aristóteles é o primeiro a se aventurar nas investigações mais seguras sobre a consciência e a conduta do homem (Cf. DORIN, 1980, p. 6 e 7)
[3] Cf. VAZ, 2010, p. 3
[4] Cf. PEREIRA, 1976, p. 638.
[5] Cf. PEREIRA, 1976, p. 350.
[6] VAZ, 2010, p. 3
[7] DEKENS, 2008, p. 10
[8] KANT, 1999, p. 478
[9] Cf. DEKENS, 2008, p. 18. Antropologia significa em sua etimologia o estudo do ser humano (ἂνθρωπος [ánthropos] significa em grego homem, mulher Cf. PEREIRA, 1976, p. 51). Existe uma diferença entre a antropologia e a psicologia, visto que a Antropologia tem como objetivo construir um discurso sobre o homem-objeto (epsitemologicamente), formalmente considerado como sujeito (ontologicamente) Cf. VAZ, 2010, p. 3, já a psicologia é uma ciência que busca compreender o ser humano a partir de seus comportamentos e condutas em seu meio Cf. VAZ, 2010, 172.
[10] Na nota 6 da primeira justificativa afirma-se com Lima Vaz, que o questionamento sobre o homem é um tema que na antiguidade se tornou constante, porém não essencial. Na antiguidade, a questão central está em torno do discurso sobre o absoluto, ou seja, metafísico. A partir da modernidade o discurso se centra nas questões antropológicas, conforme ressaltado.
[11] Cf. MELENDO, 2005, p. 65.
[12] Cf. VAZ, 2010, p. 154. Não se vê necessidade de citar no texto as divisões das categorias de relação (objetividade, inter-subjetividade e transcendência) e de unidade (realização e essência ou pessoa), visto que não  seestá fazendo um estudo aprofundado do tema e do autor, mas sim levando em consideração a importância de suas observações acerca do pensamento sobre o homem.
[13] Ibidem, p. 168.
[14] VAZ, 2010, p. 169.
[15] SCIACCA,1955, p.427. “Todas las operaciones del espíritu provienen del espíritu mismo por medio de la inteligencia-razón, que alcanza la verdad, y de la voluntad, que se adhiere al bein.”

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O problema da Linguagem (homo Loquens)



O homem é freqüentemente definido como homo loquens, pois a propriedade da linguagem distingue-o nitidamente dos seres e  faz dele um ser totalmente singular. A linguagem se tornou o assunto principal das atuais investigações, pois o pensamento atual assumiu uma forte direção lingüística. A reviravolta nas investigações filosóficas foi operada recentemente por alguns filósofos (a partir de Moore, Wittgenstein, Russell r s escola de Viena) que pensaram que os problemas filosóficos são problemas lingüísticos. Graças a esta orientação lingüística leva-se a uma revelação do aspecto lingüístico do ser humano e um aprofundamento do homo loquens.
1.      História da filosofia da linguagem
           Os estudos lingüísticos tiveram seu início já nos tempos dos pré-socráticos os quais formularam as duas principais questões:
a)      A questão da origem da linguagem;
b)      A questão da natureza da linguagem;
            Alguns dos pré-socráticos acreditavam que a linguagem derivava diretamente da natureza ou mesmo da divindade e a concebiam como espelho direto e imediato das coisas. Os sofistas consideravam-na convencional, tanto sua origem como sua função.
            Aristóteles concebe a linguagem como instrumento do pensamento e também que ela tinha uma função de representar as coisas, mas dependendo da decisão do homem. A linguagem, era para ele, natural em sua função, mas convencional na sua origem.
            Plotino, por sua vez, acreditava que a linguagem se subtrai completamente a qualquer designação humana. É absolutamente inefável.
            Já Santo Agostinho estuda a relação da linguagem com as coisas e a subordina antes de tudo as coisas, mas definitivamente ao Verbo divino.
Os escolásticos estudavam sobretudo a problemática dos signos, distinguindo-os entre naturais e artificiais, também se ocupa, com a linguagem literal, analógica e simbólica.
O período romântico marca o renascimento dos estudos filológico e a filosofia da linguagem volta-se a questão da origem da linguagem e ao problema da relação entre linguagem e cultura.
Na contemporaneidade a linguagem tem sua ascensão e é tomada de muitos ângulos: semântico, gnosiológico, ontológico, social e psicanalítico.
2.      Importância da linguagem
            Não há nenhum aspecto da realidade e nenhum problema filosófico que não se ache possível resolver abordando-o do ponto de vista lingüístico. Huxley acredita que a linguagem faz o homem ser o que ele é. A linguagem, para ele, dá capacidade ao homem de registrar suas experiências para posteriores gerações e ainda o permite apreender, em sentido obscuro, o mecanismo do universo.
            Cassirer acredita que a linguagem é um dos meios fundamentais do espírito, graças ao qual passamos do mundo da sensação para o mundo da visão e da representação. Ela compreende já no início o trabalho intelectual, que será exprimido na formação dos conceitos e como unidade lógica da forma.
            Gusdorf diz que a linguagem é a primeira grande invenção do homem, que contém em estado embrionário todas as outras; a linguagem é a mais original das técnicas.
            Polanyi afirma que a superioridade intelectiva do homem deve-se que exclusivamente ao uso da linguagem. Heidegger, por sua vez, chama a atenção para a importância metafísica da linguagem. Ela constitui a primeira e mais importante epifania de Ser. Para Heidegger, a linguagem faz do homem o ser vivente que é enquanto homem.
3.      Definições e divisão da linguagem
            Como primeira tentativa de definição pode-se dizer que é um sistema de signos que torna possível a comunicação entre os homens, conforme Lalande propõe como definição geral da mesma. Os signos são entendidos como algo que existe por outra coisa diferente, que indica algo diverso em si mesmo (ex.: fumaça- fogo). É da essência do signo o ter caráter intencional: atrai a atenção sobre a coisa que é signo. Temos três espécies de signos existentes:
a)      Naturais e artificiais;
b)      Lingüísticos e não-lingüísticos;
c)      Icônicos e convencionais;
           A linguagem é um sistema de signos artificiais e convencionais destinados à comunicação, ela quer significar intenções idéias, sentimentos, coisas etc. Ela é um instrumento ideal da intencionalidade essencial do homem, é uma abertura que possibilita a comunicação e esta se efetua principalmente mediante a linguagem.
           É de suma importância que façamos três distinções nas discussões sobre a linguagem:
Linguagem: usa-se em oposição a língua, para distinguir a função de se exprimir, em geral com as palavras, dos vários sistemas lingüísticos fixos em uma sociedade determinada;
Língua: é um sistema supra-individual de signos, graças aos quais o homem pode comunicar entre si. É diferente de fala, a qual é a forma concreta e individual assumida do sistema, segundo o uso de determinada pessoa, segundo os significados pessoais, subjetivos e emotivos por ela desejados.
Significado e significante:
·         Significante quer dizer uma realidade como é denotada e estruturada pela linguagem;
·         Significado: indica o modo sempre parcial e histórico em que a língua falada atualiza o significante; o significado representa a atualização desse significante em um determinado discurso e em uma cultura determinada;
4.      Origem da Linguagem
            Existem duas concepções sobre a origem da linguagem:
a)      Linguagem é recebida (Deus ou Natureza);
b)      Foi inventada pela homem (imitando a natureza ou artificialmente);
            Ambas foram acolhidas por pensadores tanto na antiguidade quanto nos tempos presentes. A primeira, atualmente, é pouco acolhida, porém antigamente foi muito acolhida; segundo Humboldt, a linguagem tenha sido colocada no homem, pois é mediante ela que o homem é homem.
            Porém, contemporaneamente, a tese mais comum é que a linguagem é fruto da evolução, mas há modos diferentes de interpretar, a saber:
a)      Onomatopéia: acreditavam que a linguagem nasce pela imitação que o homem faz dos sons da natureza;
b)      Convenção: o homo sapiens imita certos sons para cumprir determinadas operações;
Obs.: essas duas teses podem integrar-se mutuamente;
5.      Condições transcendentais da linguagem
            A linguagem pressupõe 3 condições transcendentais, 3 constantes ou componentes absolutos:
·         Sujeito que fala;
·         Objeto de que se fala;
·         Interlocutor a que se fala e com quem se quer comunicar;
            Se falta um desses componentes a linguagem já não pode ter lugar, para Macquarrie a linguagem é um complexo de relações fecundas, sobre esses três termos citados.
6.      Função e valor da Linguagem
            Até alguns anos atrás se costumava apresentar uma divisão dicotômica das funções da linguagem:
·         Função descritiva, ou cognitiva, ou denotativa, ou representativa, ou simbólica;
·         Função emotiva, performativa, existencial ou pessoal;
            Ultimamente, porém, tornaram-se mais freqüentes os autores que acreditam na linguagem com uma divisão tricotômica. Chega-se a acreditar que esta divisão seja mais justificada que a primeira, pelo fato de ela resultar dos três componentes essenciais constitutivos da linguagem:
a)      Função representativa ou descritiva nos confrontos do objeto;
b)      Função expressiva ou existencial ou emotiva nos confrontos do sujeito;
c)      Função comunicativa ou intersubjetiva nos confrontos da pessoa que se dirige o discurso;
a) Função descritiva
            A corrente neopositiva e analítica dá valor absoluto à função denotativa e condena como insignificantes e carentes de sentido as outras funções. Somente pela função denotativa o homem está habilitado a alcançar e a transmitir a verdade. Existem críticas a essa teoria dos neopositivistas, das quais são as principais:
I)                   O critério de verificação experimental é um postulado metafísico privado der qualquer fundamento, é uma proposição metafísica sensorial, que se desqualifica sozinha porque é invencível;
II)                 A preferência pela linguagem cientifica é de todo injustificada, porque há muitas outras linguagens que para a existência humana são tão importantes quanto a científica (por ex.: a linguagem ordinária, ética, artística, poética e a mística);
III)              A preferência pela função descritiva ou cognitiva da linguagem é a conseqüência de  uma tradição intelectualista e racionalista que foi extremamente danosa, porque criou uma imagem deformada e empobrecida do homem;
Reconhecida a insustentabilidade do critério de verificação experimental, alguns epsitemólogos propuseram como critério a falsificabilidade: são científicas apenas os dotados de falsificabilidade.  Porém, o critério de falsificabilidade não pode dizer outra coisa que não isso: não é de fato cientifico aquilo que foi demonstrado ser falso.

b) Função comunicativa
             A função principal da linguagem humana é de fato a comunicação e comunicativa. Em muitos casos não se pretende descrever somente objetivos, coisas, fenômenos, etc., mas afetos, sentimentos etc. Barbotin põe em evidência o valor comunicativo, existencial, prático da linguagem, a qual é instrumento privilegiado da comunicação e também da presença da sociabilidade.
            A função fundamental da linguagem é, pois, a da comunicação, todavia, deve-se constatar que é uma comunicação que a linguagem não consente nunca realizar plenamente, pois ela tem aspetos ambíguos (formação – deformação).
c) Função e valor existencial
            A linguagem é importante não apenas pela função descritiva e comunicativa, mas também pela função existencial. Ela serve também para testemunhar nos outros a  si próprio a existência. Não se trata de um testemunho vago, indeterminado, genérico, mas determinado, preciso e qualificado. A palavra adquire densidade essencial sobretudo através do nome, ter um nome significa possuir existência.
d)      Função ontológica
            Heidegger chama a atenção dos estudiosos sobre outra função capital da linguagem, a do confronto com o ser. A natureza propriamente da linguagem é de dizer enquanto mostrar. A linguagem original tem uma força que funda o próprio ser das coisas, poder-se-ia dizer uma força criativa.
            Heidegger atribui à linguagem originária uma densidade ontológica fundamental: a palavra não é somente habilitação e signo, mas também fonte e sustentáculo do ser das coisas. Porém, não é a palavra que produz o ser das coisas, mas ela é como uma relação (“relação fundamental”, “relação de todas as coisas”), uma espécie de lei suprema. Para Heidegger, a palavra diz o ser.
            Da linguagem originária que é essencialmente  dizer tem-se a origem da linguagem humana, que antes de dizer é essencialmente um escutar e pode tornar-se  dizer somente depois de ser já um escutar. O dizer originário, ou seja, a palavra dotada daquela densidade ontológica-fundamental a que se refere é o mito. Para Heidegger e muitos outros, o mito é uma expressão mais direta, imediata e original e, portanto, também mais autêntica da realidade.
7.      Relação da linguagem com o pensamento, com as coisas e com os interlocutores
           Passa-se agora a considerar o problema da linguagem de outro ponto de vista: o das suas relações com o pensamento, com as coisas e com os interlocutores.
           Com relação ao pensamento-linguagem a solução comum é ver a linguagem como um instrumento subordinado e secundário do pensamento. Os estruturalistas e hermeneutas tendem a subverter essa relação e a pôr o pensamento ao serviço e à dependência da linguagem.
           Para o que concerne a linguagem e ser há duas tendências opostas:
a)      Geralmente se reconhece na linguagem valor semântico, indicativo, assinalado do ser;
b)      O ser acha sua epifania na linguagem, sobretudo o ser do homem tem a sua sustentação, o seu modo de linguagem;
            Quanto a relação linguagem-interlocutor existem duas teses opostas:
a)      O valor essencial da linguagem para a intersubjetividade;
b)       Atribuir pequeno valor intersubjetivo a linguagem, porque parte de uma concepção egocêntrica, angélica do homem;
            A linguagem tem importância capital pela função intersubjetiva que desenvolve, a qual provém da função comunicativa da linguagem e ter caráter mais prático do que descritivo. Além disso, traz consigo, em cada caso forte dose de elementos pessoais (subjetivos, emotivos).


8.      Implicações onto-antropológicas da linguagem
O estudo da linguagem revelou muitas coisas sobre o ser do homem, delas pode-se destacar três:
I.                    A linguagem distingue o homem, de modo nítido, dos animais, colocando em evidência a sua superioridade intelectual;
II.                 A linguagem revela a natureza completa do ser do homem, revelando claramente como nenhum outro fenômeno a interação e a interdependência do físico e do conceptual na existência humana;
III.               A linguagem desvela nos confrontos com a realidade a tensão do homem ao suplantar-se continuamente, a auto-transcender-se e a transcender tudo o que disse e é capaz de dizer.



Referências bibliográficas:
·         MONDIN, Battista. O homem quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. 4.ed. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 132- 152.

O espaço e tempo como condição para o conhecimento.



            Kant (1724-1804), filósofo moderno, coloca-se em investigação sobre como se percebe os objetos e conclui que a sensibilidade os percebe no espaço e tempo, isto é, que a sensibilidade percebe seus fenômenos. Ele então começa a analisar o tempo e espaço para mostrá-los como intuições puras da sensibilidade. Este texto tem por objetivo mostrar, mesmo que a grosso modo, o pensamento Kantiano sobre essas condições para o conhecimento dos objetos, principalmente a presença deles na sensibilidade. Deve-se destacar que Kant intitula seu pensamento sobre a sensibilidade de Estética transcendental.
            O primeiro a ser analisado é o espaço, Kant começa afirmando que o espaço não pode ser conceito formado a partir das experiências externas, mas que é a priori, porque é graças a ele que se pode perceber as coisas como externas ao sujeito, ou em determinado local (ex.: um objeto ao lado do outro). Kant ainda afirma que é possível perceber um espaço que não contenha nenhum objeto, porém é impossível para o ser humano perceber um objeto que não esteja no espaço – aqui observa-se que independente de qualquer condição sempre haverá o espaço. Kant ainda dirá que o espaço não é um conceito, pois só se tem a representação de um único espaço (quando vários espaços são percebidos só se refere a partes de um único espaço). O espaço, com isso, só poderia ser um intuição e não conceito, pois ele encerra em si uma infinitude de representações e um conceito não pode ser pensado enquanto encerra em si essa infinitude.
            Pode-se então observar em primeiro lugar que o espaço é uma condição a priori no sujeito, ou seja, é subjetiva para o conhecimento, pois fora dele o homem não consegue perceber nada; em segundo lugar, o espaço não é mais do que a forma de todos os fenômenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjetiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa. O espaço é dado no espírito antes de todas as percepções reais, as quais são determinadas pelo mesmo. Kant, ainda irá afirmar que só se tem certeza dessa percepção nos humanos e não nos outros seres. O espaço, portanto, não será condição de possibilidade das coisas em si, mas condição da manifestação das mesmas ao espírito humano.
            Após a análise do espaço, Kant parte para a análise do tempo, o qual será analisado similarmente ao espaço. Ele começa afirmando que tempo não é um conceito empírico extraído de qualquer experiência, isto é, só se pode perceber que uma coisa existe em um determinado tempo ou em outro tempo diferente se se tem a representação do tempo.  O tempo ainda é uma representação que constitui o fundamento de todas as intuições.[1] Todos os fenômenos se passam no tempo, mas este não passa, portanto o tempo é a priori. Além disso, o tempo é sucessivo e não simultâneo, ou seja, o tempo tem apenas uma dimensão, porém sempre existe uma sucessão (um vem depois do outro), não se pode ter dois tempos em um mesmo instante, se o tempo fosse chamado de simultâneo poderia se pensar isso.[2] O tempo também não é um conceito discursivo, ou até mesmo conceito geral, mas um forma pura da intuição sensível, ou seja, não se pode conceber diferentes tempos, a não ser como partes de um único tempo (como no espaço, somente diferente na sucessividade e simultaneidade).
            Daqui também pode-se observar que o tempo é a priori, ou seja, é subjetivo, mas se diferencia em um quesito do espaço, pois o tempo será fundamento para todas a intuições, enquanto o espaço só é das externas.
Pode-se concluir que o tempo e espaço são condições subjetivas que o sujeito humano tem para perceber os objetos. O espaço e o tempo não são coisas, mas formas da sensibilidade. Portanto, todos os objetos são percebidos no espaço e tempo, como fenômenos e não em si mesmo. Pode-se destacar que isso é uma crítica à metafísica, pois ela era considerada como ciência, todavia Kant mostrou que o sujeito não pode perceber os objetos metafísicos – visto que estes estão fora do espaço e tempo (ex.: Deus, alma, mundo, anjo...) – como, então, o homem pode fazer metafísica?


[1] O espaço é fundamento de todas as intuições externas e o tempo é um fundamento de todas as intuições, tanto externas quanto internas.
[2] O espaço é simultâneo, mas não sucessivo, pode haver dois espaços diferentes (ex.: um espaço ocupado e outro não) – mas isso o no modo de perceber, pois o espaço é único – ao mesmo tempo, porém não pode haver um espaço e depois não haver mais aquele espaço como é no caso do tempo.

Referência Bibliográfica:

  • KANT, I..  Crítica da Razão Pura.  Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur 
  • Moosburger.  São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores)

A APLICAÇÃO DO TERMO PERSONA AO SER HUMANO SEGUNDO SANTO AGOSTINHO


1) INTRODUÇÃO
            Hoje a palavra “pessoa” se tornou sinônimo de ser humano. Mas, pode-se questionar: “será que sempre foi assim?” sabe-se que não. Pois foi graças ao pensamento agostiniano que se teve a aplicação de tal termo a todo e qualquer ser humano[1].
            O presente trabalho tem por objetivo mostrar como Agostinho aplicou o termo pessoa ao ser humano, dando enfoque a aplicação e não mostrando a conceituação do termo, visto que Agostinho não dá a definição do termo, como filósofos posteriores o fizeram, por exemplo Boécio.
            Inicia-se este trabalho fazendo uma retomada histórica do termo pessoa, logo após mostra-se as analogias que o bispo de Hipona faz com o ser humano e a Trindade divina, para aplicar o termo ao ser humano.[2]


2) RETOMADA HISTÓRICA DO TERMO “PESSOA”

A)Período clássico
            O termo persona surge na língua latina para designar uma máscara usada pelos atores na representação teatral, quando encenavam personagens em suas apresentações. A máscara também ajudava a ampliar a voz do ator para que a plateia o ouvisse bem, daí o termo per + sonare (fazer soar).[3]
            Na cultura grega, o termo também foi usado no mesmo sentido, sendo traduzido para a palavra prósopon, ou seja, máscara para fazer teatro.
            A máscara revelava o personagem, porém escondia o ator por trás de si, deixando apenas que sua voz fosse exposta ao público:
“o tema grego-latino do prósopon / persona orienta-nos igualmente para a dignidade da pessoa que está “por detrás” do ator: a face banal, cotidiana e de todos conhecida do comediante, isto é, para “disfarçar”, mas usa-se sobretudo para representar outrem mais digno – um deus, por exemplo – , fixando-lhe os contornos, a figura e ampliando o som, de forma que a voz se faça ouvir no teatro.”[4]
            Existem estudiosos que acreditam que a palavra possa derivar do etrusco phersu (o Fersu), devido a uma palavra coloca na pintura de um tumba, onde aparecem dançarinos mascarados.
            Também existem os que acreditam que a origem do conceito[5] estaria no direito grego e romano. Pessoa seriam os varões, livres e sujeitos de deveres e direitos. As mulheres, crianças e escravos não tinham tais direitos. Observa-se aqui que “homem (varão e mulher) e pessoa não são sinônimos”[6], pois tanto os escravos, como mulheres e crianças não eram vistos como pessoas, dotadas de liberdade e direitos, ou seja, não era reconhecidos.
            Não é fácil definir a origem do termo pessoa e  seu significado, antes da abordagem cristã:“a origem etimológica da palavra pessoa tem objeto de grande número de propostas, não obstantes nenhuma a tenha esclarecido completamente.”[7]

B) Os primeiros séculos do Cristianismo
            O conceito pessoa foi formulado pela primeira vez, exatamente no contexto na reflexão teológico-cristã, ao pensar no Cristo (Deus encarnado) e em Deus (uno-trino). O conceito foi usado para resolver questões levantadas sobre a Trindade (um Deus ou três Deuses?) e sobre a Encarnação de Jesus Cristo (Deus ou homem?). Os autores não pretendiam explicar filosoficamente os seres humanos como pessoa, mas desejavam explicar a fé que tinham em um Deus-Trindade e na Encarnação da segunda pessoa dessa Trindade como homem, sem perder sua divindade.
            O termo pessoa foi aprofundado pela reflexão teológica, nos do séculos IV e V. O problema teve início com alguns teólogos do século III, chamados de “modalistas” (Noeto, Prassea e Sabellio). Eles interpretaram a diferença das individualidades que há na Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) como modos de Deus se revelar, mesmo sendo único, com seus diversos papéis, os quais são desenvolvidos na história da salvação. Este uso se liga ao termo Prosopon[8] , no sentido de individualidade de cada um, mas não deixando de ser  uma única e mesma substância.
            Sabe-se que foi Tertuliano que traduziu a palavra grega prosopon ao conceito latino persona, próprio do direito romano[9]. Além disso, ele usou os termos latinos Substantia, persona e status para sanar essas confusões modalísticas, mas não diminuiu a questão.[10]
            O concílio de Nicéia, em 325, não conseguiu resolver o problema. Ele combatia Ario, que acentuava a diferença entre as 3 pessoas divinas e negava a divindade de Cristo. Nesse Concílio é proclamado o dogma de que Cristo tem a mesma natureza do Pai. Mas, mesmo assim, não conseguiu resolver o problema para distinguir adequadamente as pessoas divinas, sem anular sua natureza una.
            Orígenes introduziu na reflexão trinitária, o vocábulo “hipostasis, quando distinguiu três coisas (prágmata) na essência comum (ousía) de Deus, que se diferenciam, precisamente pelas distintas hipostasis[11]. Os padres da Capadócia (Basílio, Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno) ajudaram, tomando os termos que Orígenes usou, para clarear definitivamente o problema. Segundo eles, existe uma diferença entre ousía (essência ou natureza) e hipostasis (substância ou substrato: substratum em latim). Eles acreditavam que a hipostasis é a realização concreta, individual da essência comum e a substância pode ser comum[12].
            Tertuliano tomando então essa distinção, afirma “tres Personae, una Substantia”. Com essas distinções, opera-se a identificação prática entre prosopon e hipostasis. A substância passa a significar o que há de comum enquanto a pessoa significa a individualidade na substância. [13]

3) A IMAGEM DA TRINDADE NAS CRIATURAS, SOBRETUDO NO HOMEM.
            Agostinho parte então do que recebera da Tradição, para analisar a Trindade. Ele inicia a obra De Trinitate com o intuito de esclarecer[14] a doutrina sobre a Trindade. Ele observa a incapacidade de se dizer ou conceituar a Trindade, sabendo da incapacidade da ciência humano para o fazer.
            Porém, o bispo de Hipona tem consciência de que a criatura é imagem de seu Criador e pode observar que todas as coisas trazem a marca do princípio, do qual elas receberam o ser, portanto elas são imagem que expressa, em grau menor, a Trindade:
“Dois erros devem ser evitados pelo pensamento que eles ameaçam: Crer que nada do que se sabe sobre as coisas pode ser, em algum grau afirmado acerca de Deus; e crer que o que se sabe sobre as coisas pode ser afirmado acerca de Deus no mesmo sentido que sobre as coisas”[15]
            Ele, então, tomando as Sagradas Escrituras e observando que o homem é a melhor imagem de Deus, – “façamos o homem a nossa imagem e semelhança”[16] – passa a analisá-lo com o intuito de esclarecer[17] melhor a doutrina sobre a Trindade. A dignidade da imagem do homem pertence propriamente apenas a sua alma, nesta pertence propriamente ao pensamento (mens), que é a parte superior e mais próxima de Deus.[18]
             Santo Agostinho encontra oito analogias da imagem de Deus nas criaturas:
Amans -  quod amatur – amor[19];
Mens – notitia – amor[20];
Memoria – Intelligentia – Voluntas [21];
Res (visa) – Visio (exterior) – Intentio (anima)[22];
Memória (sensibilis) – visio (interior) – Volitio[23];
Memoria (intellectus) – scientia – voluntas[24]
Scientia (fidei) – Cogitatio – amor[25]
Memoria Dei – Intelligentia Dei – amor Dei[26]
Porém, deve-se pensar as analogias próprias da mente, pois, como já dito, é na alma que está a dignidade da imagem de Deus. Portanto, dentre as citadas, deve-se tomar para este estudo as seguintes analogias:
A)    Mens, Notitia e Amor;
B)    Memoria, Intelligentia e voluntas;
C)    Memoria Dei, Intelligentia Dei e Amor Dei.
Deixando para textos posteriores o estudo das demais analogias.
            Deve-se ter em destaque que, é graças a essas analogias que Agostinho encontra a possibilidade de aplicar o termo pessoa ao ser humano.

A) Mens, Notitia et Amor
            O bispo de Hipona inicia essa reflexão ressaltando que a imagem que irá usar é imperfeita, mas mesmo assim é imagem[27]. Ele analisa inicialmente o amor da mente.
            Quando se ama algo, encontra-se três realidade distintas: o amante, o amado e o amor, mas,  nesse caso, Agostinho busca o amor que a mente tem. Entretanto, a mente ama, ela ama a si mesma e nesse amor existem duas realidade : o que é amado e o amor. Pois “a mesma coisa é mencionada duas vezes ao se dizer: ama a si mesma e é amado por si mesmo”[28].
            Agostinho, deixando de lado tudo o que não é próprio da alma, chega a duas realidades: a mente e o amor. Mas, ele não fica satisfeito, pois a mente não pode amar a si mesma, se não conhecer a si mesma[29].
            O conhecimento da mente é necessário, pois não se pode amar algo que lhe seja desconhecido; é necessário que o conhecimento não exceda o seu ser, porque é a mente que conhece e é conhecida.
            Agostinho, nessa análise, consegue perceber uma imagem, mesmo que imperfeita de Deus, pois a mente (mens), o conhecimento (notitia[30]) e o amor são Três realidade distintas, porém de mesma substância:
“Portanto, a mente, seu amor e seu conhecimento formam três realidades. Essas três coisas, porém são uma única unidade e quando perfeitas são também iguais.”[31]
B) Memoria, Intelligentia et Voluntas
            Essa analogia é mais satisfatória do que a precedente, porque os termos dessa tríade são realmente distintos, mas nem por isso deixam de formar uma unidade, isso é devido a unidade mesma do espírito.
            Agostinho começa considerando que já nas crianças essas faculdades se manifestam unidas, mas tendo sua distinção[32]:
“Com efeito, também o temperamento ou, como outros preferem chamar, a índole das crianças, costuma refletir essas três faculdades. Quanto mais tenaz e facilmente a criança recorde, com mais presteza  entenda e com mais afinco seja aplicada, de tanto mais elogiável índole é possuidora”.[33]
            Para Agostinho, a memória é entendida como a faculdade da recordação e da consciência. A memória é espiritual, conforme ele já explica nas Confissões[34]. Olhando mais profundamente, é a consciência de si mesmo, a que pertence qualquer conhecimento de si: “nada, porém existem de tão presente na memória como a própria memória”[35]. O entendimento e a vontade também são compreendidos do mesmo modo, pois entendem e amam o que há na memória.
            Analisando melhor a analogia, pode-se observar que a memória lembra que tem memória, inteligência e vontade. Assim como o entendimento entende que entende, quer e recorda, do mesmo modo, a vontade quer querer, lembrar e entender[36].
            Além disso, o que não se recorda, não pode estar na memória nem poderá ser compreendido nem mesmo amado: “todo inteligível que escapa à minha memória, à minha vontade, nem o recorde nem o amo”[37].
            Portanto, acredita-se que essa imagem é a melhor da divina Trindade, pois nesta analogia a memória representa melhor a pessoa do Pai, enquanto a mens, na primeira analogia, representa antes toda a divindade[38]. O Filho e o Espírito santo procedem do Pai, como na alma, a intelligentia et voluntas procedem da memoria onde estão[39].

C) Memoria Dei, Intelligentia Dei et Amor Dei
            A tríade da alma anterior não é uma imagem da Trindade, só porque pode recordar de si, entender-se e amar-se a si mesma, também o é porque pode recordar, entender e amar a seu Criador. Esta trindade será chamada de trindade da Sabedoria[40], pois é pela sabedoria divina que se pode unir os termos memoria – intelligentia – amor.
            Interessante ressaltar que, nessa analogia, Agostinho irá partir do amor ao invés de começar pela memória, como o fizera na analogia anterior. Para ele, amar a si mesmo e não amar a Deus é como se enganar sobre seus sentimentos:
Quem sabe se amar a si mesmo, ama a Deus. Quem porém, não ama Deus, mesmo que se ame – o que lhe é natural – pode dizer com razão que se odeia.”[41]
            Mas, como Agostinho já havia observado na analogia anterior, para que algo seja amado é necessário tê-lo na memória e conhecê-lo. Ele observa que a imagem de Deus está presente na memória[42] pela participação do homem em Deus. É pela luz divina que se tem a imagem de Deus na memória humana[43]. O homem deve fazer todo o processo que foi comentado na analogia anterior para amar a Deus e a si: “se não recordar de Deus, se não o compreender e se não o amar, não estará com Deus”[44].




4) CONCLUSÃO
            O ser humano é a melhor imagem que Agostinho encontra para expressar a Trindade de Deus. Não está eliminada a possibilidade de as outras criaturas serem a imagem de seu criador, porém o ser humano é a melhor imagem. Ele é a imagem e semelhança do Deus como a Sagrada Escritura o diz[45].
            Os santos padres anteriores a Santo Agostinho forneceram a base para o seu pensamento sobre a Trindade, vendo-A como uma substância única, mas que tem individualidade própria: “tres persona, una substantia”.
            O Filósofo hiponense, tomando essa teoria, começa a analisar a melhor imagem de Deus que se encontra sobre a Terra. Analisando o ser humano, observa que ser imagem de Deus é privilégio exclusivo da Alma humana[46]. Agostinho parte então para uma busca de imagens de Deus na alma, encontrando: mens, notitia et amor; memoria, intelligentia et voluntas;  memoria Dei, intelligentia Dei et amor Dei.
            A primeira é expressa na relação de que a mente tem seu conhecimento e ama a si, conhece a si mesma e se ama. A segunda, expressa a memória que se lembra de si própria, de seu conhecimento e de sua vontade; o conhecimento que conhece a si próprio, de sua lembrança e de seu querer; e a vontade que quer querer, lembrar e conhecer. A terceira imagem faz toda a caminhada da segunda, só que em relação a Deus e não a si próprio.
            Diante das analogias citadas, Agostinho conclui que o ser humano é pessoa, pois sendo Deus três pessoas em uma única substância e o ser humano tendo também em sua parte mais digna (alma ou mens) como uma substância, com três individualidades diferentes, pode ser visto também como pessoa: “cada homem, entretanto, tomado separadamente, é uma pessoa humana”[47].







5) REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS:
  • AGOSTINHO, Santo. Confissões. 2. ed. São Paulo: Abril cultural, 1980. Coleção os pensadores (Símbolo usado ao longo do texto: Conf. )
  • ____________. A Trindade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. coleção patrística  (Símbolo usado ao longo do texto: De trin. )
  • BOEHNER, Philotheus; GILSON, Étienne. História da Filosofia cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1982. (Símbolo usado ao longo do texto: BOEHNER, 1970 )
  • CABRAL, Roque. Logos: Enciclopédia Luso- brasileira de Filosofia. São Paulo: Verbo, 1973. vol. 15. (Símbolo usado ao longo do texto: CABRAL, 1973)
  • GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. (Símbolo usado ao longo do texto: GILSON, 2006, )
  • SILVA, Edmar José da. O homem como pessoa em Tomás de Aquino. Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana: faculdade de Filosofia, 2005. (Símbolo usado ao longo do texto: SILVA, 2005, )
  • VAZ, Henrique C. L. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992. (Símbolo usado ao longo do texto: VAZ, 1992 )
  • VILLA, Mariano Moreno. Dicionário do pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000. (Símbolo usado ao longo do texto: VILLA, 2000 )


[1] Cf. VAZ, 1992, p. 220.
[2] Sabe-se que o objetivo de Agostinho não era aplicar o termo pessoa ao ser humano e sim explicar como vê o Mistério trinitário.
[3] SILVA, 2005, p. 8.
[4] CABRAL, 1973, p. 97.
[5] Não somente a palavra
[6] VILLA, 2000, p. 295.
[7] VILLA, 2000, p. 294.
[8] Máscara.
[9] VILLA, 2000, p. 295.
[10]  SILVA, 2005, p. 11.
[11] VILLA, 2000, 595.
[12]  SILVA, 2005, p. 11.
[13] CABRAL, 1973, p.100.
[14] Esclarecer e não dizer propriamente o que é o Deus Trindade, pois “Deus é inacessível ao pensamento humano, quando considerado na unidade de sua natureza; ainda mais inacessível [...] considerado em sua Trindade” (GILSON, 2006, p. 416)
[15] GILSON, 2006, p.415.
[16] Gn 1, 26
[17] Ver nota n° 14 deste texto.
[18] GILSON, 2006, p 416.
[19] De Trin. VIII; 10,14  (o que ama, o que é amado e o mesmo amor)
[20] De Trin. IX; 3,3 (Mente, conhecimento e amor)
[21] De Trin. X; 11, 17 (memória, conhecimento e vontade)
[22] De Trin. XI; 2,2  (objeto que se vê, Visão e atenção da alma)
[23] De Trin. XI; 3,6 (memória, visão interior e vontade)
[24] De Trin. XII; 15, 25 (memória – do intelecto – , ciência e vontade)
[25] De Trin. XIII; 20, 26 (ciência – da fé – , pensamento e vontade)
[26] De Trin. XIV; 12, 15 (memória de Deus, conhecimento de Deus e amor a Deus)
[27] De Trin. IX; 2,2.
[28] De Trin. IX; 3, 3.
[29] Idem
[30] O temo notitia significa conhecimento, ideia, conceito que formar-se de alguma coisa. Mas, pode-se questionar: é o ato pelo qual a alma explicita todo conhecimento de si mesma ou, ao contrário, é aptidão que ela tem de se conhecer, mesmo se não pense explicitamente em si e não se tome como objeto do conhecimento? E. Gilson considera que neste livro Agostinho não distingue os dois modos de conhecimento (nota do tradutor da obra que está sendo usada)
[31] De Trin. IX; 4, 4. Essa unidade é perfeita por serem iguais em valor esses elementos. Se no amor existisse carência ou excesso, haveria uma falta. E se não existisse adequação no conhecimento, tampouco haveria perfeição. Logo, o conhecimento e o amor são iguais em intensidade, ao alcançar a mente a perfeição. Não se pode romper a união, nem desordenar a hierarquia: mente, conhecimento e amor, sem pecar contra as leis da ordem., por isso devem ser iguais (N. T)
[32] Deve-se dizer que a imagem tríade anterior também está na criança, porém a atual imagem tríade se manifesta melhor do que a anterior.
[33] De Trin. X; 11, 17.
[34] Conf. X; 29-27, 38.
[35] De Trin. X; 11,18.
[36] Idem.
[37] Idem.
[38] Aqui é a alma que contem todas as Três faculdades: memória, inteligência e vontade e não a mente, como na analogia anterior: mens, notitia e amor.
[39] De Trin. 1994, p. 645 (N. T)
[40] De Trin. XIV; 12,15.
[41] De Trin. XIV; 14, 18.
[42] Agostinho irá falar sobre o esquecimento que o pecador teve com sua caída, distinguindo o esquecimento absoluto (não tem a imagem na memória, mesmo se lhe disserem sobre tal imagem não consegue trazê-la a mente) e esquecimento aparente (no momento não tem a imagem na mente, mas quando lhe dizem sobre tal imagem pode se lembrar e trazê-la a memória). É deste modo segundo que a lembrança de Deus subsiste no pecador (pela graça pode se lembrar de Deus). (De Trin. XIV; 13, 17.)
[43] De Trin. XIV; 12,15.
[44] De Trin. XIV; 12, 16.
[45] Gn. 1, 26.
[46] BOEHNER, 1970, p. 184.